segunda-feira, 24 de maio de 2010

O meu indie foi mais indie que o teu III

Para o fim deixei o melhor, uma obra-prima, a obra-prima do festival arrisco, porque embora não tenha visto todos os filmes exibidos, o raio do relâmpago raramente cai duas vezes no mesmo sítio, pelo menos no espaço de duas semanas (e o indie vai crescendo mas ainda não está no patamar Roy Sullivan). 
Falo de Burrowing, uma produção sueca, escrita e realizada por Henrik Hellström e Frederik Wenzel, película que, a par de Kasaba, de Ceylan, encabeçava o meu top de prioridades da edição deste ano. Escolha baseada numa razão muito simples: Burrowing é a estreia na realização de Hellström e Wenzel, os guonistas de Falkenberg Farewell, filme que tive também o prazer de descobrir no indie (há cerca de três anos, se não me engano), e que se revelou uma pequena maravilha poética sobre a passagem à idade adulta, realizada por Jesper Ganslandt (co-produtor em Burrowing). As expectativas eram, portanto, bastante altas da minha parte e felizmente (para mim e para a sétima arte), foram tudo menos defraudadas.
A abrir, uma citação retirada de Walden, de Henry Thoreau, dá o mote para a acção, que iremos seguir  através dos olhos de Sebastian, um miúdo de 11 anos que vive com a mãe num típico subúrbio sueco, com as suas vivendas, jardins e habitantes, em perfeita esquadria  (e isto é magistralmente ilustrado nos planos iniciais e no genérico), paredes meias com a desordenada e selvagem floresta (tal como Falkenberg Farrewell, Burrowing foi filmado nos arredores da mesma pequena cidade sueca, de seu nome...Falkenberg). Pelos seus olhos, e pelo tom do seu discurso (maravilhosas considerações plenas de maturidade disfarçadas, mas pouco esforçadamente, de infantilidades) vamos sendo apresentados aos seus vizinhos, sendo que a atenção de Sebastian é particularmente cativada pelos misfits das redondezas, um dos quais, Jimmy (a personagem mais fascinante e uma portentosa interpretação), um jovem pai solteiro, que vive com os seus pais, e que carrega constantemente a filhas nos braços ou apoia-a no que esteja mais à mão, como se tivesse medo de a pousar naquele solo castrador (e das poucas vezes que o faz, o mal manifesta-se). Todos estes misfits têm uma relação  quase panteísta, de um lirismo intenso, com a floresta, verdadeiramente imbuídos do espírito de Walden, lamacento e árduo q.b.. Enquanto em Falkenberg, a floresta era aberta, luzidia, misturando-se em perfeita harmonia com as habitações e contribuindo para o espírito poético da pacata existência dos personagens, em Burrowing é densa, isolante, a verdadeira casa, que resguarda, que protege, os personagens não procuram nela escapar da vida, ela é onde fazem a sua verdadeira vida, o resto, onde dormem e acordam todos os dias, onde interagem com os restantes, não passa de um mero sítio de passagem. Numa das cenas que mais inteligentemente captura este espírito, Jimmy espera na casa de um vizinho que os seus pais cheguem para lhe abrirem a porta de casa (porque Jimmy ainda não provou merecer uma cópia da chave, como nos explica Sebastian) e esse vizinho, que o trata tanto como um adulto como à pequena filha que este carrega nos braços, começa a discorrer sobre os tipos de madeira que já usou e pretende usar na remodelação da sua casa (uma constante, a remodelação e o melhoramento das casa e jardins enquanto medida da felicidade) enquanto vamos sentindo a ansiedade de Jimmy crescer, como se o magoasse mais que qualquer coisa no mundo aquele uso da madeira, até que sai porta fora com a filha direitinho aos confins da floresta. Na cena final, Sebastian, com a roupa que a sua mãe tão esmeradamente escolheu para irem à festa de onde ele acabou de se escapulir, toda rasgada e suja pela deambulação (chamo-lhe deambulações, mas a verdade é que nunca sentimos que os personagens andem sem rumo pela floresta, muito pelo contrário, parecem sempre movidos por uma vontade férrea e  com um objectivo claro e preciso) no bosque denso, virar-se-á para nós, para que anunciar que encontrou o sítio perfeito, que é ali que vai começar a escavar (as fundações de uma nova existência, acrescento eu). O título original do filme escreve-se assim em sueco: Man Tänker Sitt. Não faço puto de ideia o que é que isto quer dizer, nem pretendo descobrir, mas soa-me mesmo muito bem.
Apercebo-me agora, que cometi um engano no início deste texto, afinal, o relâmpago cai, mais frequentemente do que julgava, duas vezes no mesmo sítio. E parece que tem memória, para poder cair com cada vez mais força.