quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A velha mochila vermelha

À porta da estação de comboios, ele tentava afastar o cabelo desgrenhado da frente dos olhos. O facto de não o lavar há uma semana e a barba grande, decididamente não ajudavam à delicada operação. Mesmo assim, nunca lhe tinha passado pela cabeça que cabelo empeçado pudesse doer tanto, e quanto às comichões, preferia nem pensar nelas. Havia mais em que pensar, de facto. A sua última semana tinha-se limitado à preparação para aquele momento. Noites passadas em claro, a fumar e a beber, a escrever uns versos, a alinhar uns acordes, a chorar quando conseguia, enfim, tudo o que o auxiliasse na capital tarefa de chegar ali, àquele momento, com o pior aspecto possível e num estado de auto-comiseração bíblico. Não era estratégia virgem e já dera vistosos e suculentos frutos. Na verdade, apresentava até um ar bastante descansado - às noites em claro tinham-se seguido, invariavelmente, dias inteiros a dormir, para além de que nunca tinha tido grande estômago nem para álcool nem para fumos - e não era a vestimenta, que tão esmeradamente tinha escolhido e com a qual dormia há uns dias, que ia alterar essa realidade.
À sua frente lá estava ela: magra, cabelo curto, seios e nariz empinados. A roupa que vestia não podia ser mais apropriada - tendo em conta que aquela que ali se apresentava era, nada mais nada menos, que a mulher que lhe tinha partido o coração - um fato acizentado. Limpo, profissional, justo. Parecia outra sem o habitual blusão de cabedal, que ele lhe tinha oferecido, e sem as calças de ganga desbotadas, que ele lhe tinha rasgado. No nariz restava uma leve cicatriz, silenciosa testemunha - talvez mais silenciada do que silenciosa, vendo bem as coisas - do metal que ainda há uma semana atrás lhe adornava o rosto.
Aos pés dela, reconheceu a velha mochila vermelha que tão fielmente os acompanhava desde que a tinham encontrado - lembrava-se como se fosse hoje - abandonada nos balneários dum qualquer parque de campismo. Tinham-na recolhido e tomado conta dela como de um filho. Mostraram-lhe o mundo: não havia festival de música, estação de comboio ou parque de campismo que aquela mochila não tenha conhecido. Não conseguia evitar pensar que se aquela mochila falasse, talvez ela os pudesse salvar. Embora ele soubesse, por experiência própria, o quão contraproducente era fantasiar em horas de aflição, sentia-se resvalar perigosamente.
Seria aquele um sinal de que ela não estava mesmo decidida a apanhar aquele comboio? Ou melhor, teria ela trazido a mochila "deles" na esperança que ele percebesse que o que ela realmente queria era que eles apanhassem aquele comboio juntos, como tantos outros? Rumo a uma vida nova? A outras mochilas? Por outro lado, de certeza que ela não tinha outra como aquela. A capacidade de arrumação da velha mochila vermelha, com todos os seus bolsos e compartimentos secretos, era verdadeiramente impressionante.  Se fosse ele a partir em vez dela, também não teria pensado duas vezes entre confiar os seus pertences àquele intrincado e sofisticado sistema de divisões almofadadas ou a uma outra qualquer. Isto se não a tivesse deixado na casa dela, como parecia ser o caso. 
A aparente imobilidade dela não o impedia de descortinar um leve menear de ancas, tão subtil quanto preciso. Ele sabia lê-la como ninguém. Ela própria, em tempos, o tinha admitido. E a mensagem que aquelas ancas transmitiam era simples e clara: "a vida continua, vais conhecer outras pessoas, vais ter sexo, mas não como este...".