terça-feira, 2 de março de 2010

Ponto rebuçado

A Letter to Three Wives é um daqueles filmes de um cineasta em ponto rebuçado. Quando um homem olha para uma câmara, para um guião, para os seus actores, e os vê no seu estado mais puro, um código que ele decifra só com o olhar, que se move a uma velocidade épica, enquanto ele acelera por entres as falhas do sistema. 
Sem nunca despir completamente o manto de comédia clássica (embora não tenha o "Lubitsch Touch", como lembrava, e bem, João Bénard da Costa), consegue ao mesmo tempo pegar nas mais básicas convenções do cinema e, orgulhosamente, virá-las do avesso. Estão a ver aqueles filmes que nos impressionam pela subtileza com que a sua inteligência nos vai levando sem nunca se expor demasiado? A Letter to Three Wives é exactamente o contrário. Sabe que é inteligente e faz questão que nós o saibamos também, esfregando-nos a sua superioridade na cara. E ficamos a olhar para ele como se olha para aquela arrogância, pela qual não queremos admitir, que lá no fundo, temos um fraquinho, porque a sentimos plenamente justificada. 
Da maravilhosa voz-off, que não manipula o filme, mas, coisa bem diferente, a nossa percepção do filme, aparecendo por exemplo a examinar as suas próprias acções (sendo ela a personagem ausente do filme) mas de uma perspectiva totalmente descomprometida, ou inclusive a responder à letra a diálogos entre outras personagens (uma espécie de segundo realizador ou a voz do realizador, como muitos já disseram), à desconstrução dos flashbacks (que por mais que o aparentem, de clássicos não têm nada), entre outras coisas, através de uma utilização genial do som, resulta um filme em absoluto estado de graça, valendo os primeiros óscares de melhor realizador e de melhor argumento, em 1950 (perdendo o de melhor filme para o melhor Rossen, All the King's Men), a um homem que tendo começado como argumentista, aventurado-se mais tarde na produção, para depois finalmente chegar à realização, ainda foi a tempo de se tornar um dos maiores realizadores de sempre: Joseph L. Mankiewicz.

Nota: por falar em estado de graça, em 1951, no ano seguinte portanto, com All About Eve, ganharia novamente os mesmos dois óscares.