segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A carripana confessa-se

"...chassis amolgados, cheios de ferrugem, guarda-lamas com cores que as tornavam invendáveis e para desencorajar Mucho, e o interior cheirando desesperadamente a crianças, a aguardente dos supermercados, a duas e às vezes três gerações de fumadores de cigarros, ou simplesmente a pó - e, limpo o interior dos carros, era preciso examinar os resíduos destas vidas, e era impossível distinguir entre aquilo que tinha verdadeiramente sido rejeitado (e suponha que por medo se guardava o pouco que aparecia) e aquilo que muito simplesmente (talvez tragicamente) tinha sido perdido: talões agrafados oferecendo descontos de 5 a 10 cêntimos, bilhetes, propaganda de baixas de preços em supermercados, beatas, pentes desdentados, ofertas de empregos, páginas amarelas arrancadas de listas telefónicas, farrapos de roupa interior ou de vestidos fora de moda que serviram para desembaciar um pára-brisas para que se pudesse ver o que havia para ver, um filme, uma mulher ou um carro que se cobiçava, um chui que talvez o levasse dentro porque não tinha mais nada para fazer, ninharias todas elas envoltas invariavelmente, como uma salada de desespero, num condimento cinzento de cinzas, de gases concentrados de escapes, de poeira, de desperdícios humanos - ficava doente só de olhar, mas tinha de olhar."

em O Leilão do Lote 49, de Thomas Pynchon