terça-feira, 3 de novembro de 2009

"A morte de todos nós"

Haviam as drogas: as duras que flutuavam dentro do seu corpo desde a noite anterior e as leves que engordavam a olhos vistos naquela manhã, havia o céu nublado, havia o ar fresco que não resistia ao convite da janela escancarada e lhe feria as narinas dormentes e havia a voz de Doug Yule a pairar pelo quarto, na sua incessante demanda por quem ama o sol. Quem poderia ele culpar? Talvez esta, talvez aquela. Talvez uma frutuosa combinação de todas.
Mas havia duas coisas das quais ele estava certo: que era uma pergunta muito apoucada para se fazer naquela manhã, a que por ali ressoava, e que não havia combinação no mundo que justificasse aquela necessidade, tão excitante quanto angustiante, de discutir com o seu amigo de longa data. Uma necessidade, não vontade, de discutir, não de conversar. Se dúvidas ainda houvesse,  aquela era a prova de que a situação em que se encontrava não era fruto do acaso. Tais palavrões só podiam ter sido exibidos à frente da sua mente rameira por alguém tão desejoso de vingança, tão sinistramente sorridente, tão voluptuosamente cândido, que esperou pacientemente, sabe Deus quantas estações, por um momento de fraqueza, por um baixar da guarda que lhe permitisse finalmente concretizar o seu há muito elaborado plano. Provavelmente, o mesmo alguém que desde há uns tempos para cá, por acreditar veementemente que era o que ele viria a ser, se limitava a chamá-lo "a morte de todo nós".
Só que esta necessidade não deambulava sozinha pelas suas entranhas. A acompanhá-la, certezas tão incomodativas como a de que o encontro com o seu amigo teria de ser ao pé da casa dele, naquele mundo de tortuosos prazeres a que chamam restaurante de comida rápida, com a sua luz fria, a sua carne quente, e as sua pessoas mornas. E havia mais. Tudo aquilo de que falariam, o que há muito tinha de ser dito, o que volta e meia tem de ser repetido, desfilava ordenadamente e com uma clareza impressionante à sua frente. Desde a excitação infantil com que perguntaria ao seu amigo se ele amava? como é que sabia? quando é que soube? até ao velho tema da comunicação. Discutiriam os bairros sociais, os condomínios privados, contar-lhe-ia os seus planos, para hoje, para amanhã, questionaria-o sobre os seus. Iria ser surpreendido, isso era certo. Sempre que se embrenhavam numa conversa franca e sem limites algo inesperado surgia, algo que ele se foi habituando a analisar de duas perspectivas distintas, intercaladamente, ao longo dos anos: por vezes, prova do quão mal conhecia o seu amigo, doutras, prova inquestionável de confiança.
Claro que não começariam imediatamente nesta discussão maior que eles próprios, primeiro tinham direito a uns minutos de conversa pequena de aquecimento, aquela a que normalmente um deles se agarra com unhas e dentes, receoso do silêncio, do implacável silêncio que tudo expõe. E seria agradável claro, as parangonas, as artes, a morte do radialista. Contar-lhe-ia como, aquando da morte deste, ele se encontrava numa entrega selvagem a uma música desabitada num qualquer prédio sofisticado lisboeta. Ele compreenderia a ironia, ele rir-se-ia com ele. Mas isso era o que eles faziam bem. Bem demais, até.