sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A noite do santo não mártir

Ontem foi noite de S.Martinho, o que por estes dias não quer dizer absolutamente nada, tirando o facto de ser mais uma desculpa para se embarcar em noites que não acabam. Um bocado como a passagem de ano sem a rua cheia de pessoas com flutes de plástico na mão e sem imagens de foguetes a rebentar nos céus de Sydney ao meio-dia (e que, dada a proximidade, aproveito para voltar a explicar que é a melhor altura do ano para um gajo se pirar para o estrangeiro, coisa que infelizmente só percebi há poucos anos, mas felizmente antes de ter putos para me impedirem de ir para o estrangeiro ou para me multiplicarem a factura de ir para o estrangeiro, ou até para, como me confessam alguns amigos mais saudosistas, tirarem a piada ao estrangeiro) ou como os santos populares, sem os manjericos e aquela coisa lisboeta de sociedade feudal que se está a cagar para as classes sociais por uma noite. É que já quase ninguém finge sequer que está interessada em comer castanhas ou em beber vinho, cuja principal qualidade nesse mesmo dia é ainda não ser vinho. Mas adiante.
Quis a boa gente do Botequim (qualquer dia levo para lá o mac e tal e faço daquilo a minha sala) e quis o Samuel Úria que tivéssemos direito a uma desculpa bem melhor para celebrar o Yom Kipur ou lá o que era aquilo ontem: nada mais nada menos que um concerto sem amplificação do próprio, no dito espaço. Ora, nenhuma pessoa com dois ouvidos, ou até mesmo só com um, poderá discordar do facto de que isto são excelentes notícias e garante de uma noite melhor passada do que a maioria das que compõem as suas tristes e vazias vidas. Mas a verdadeira excelência de tais notícias só me chegou algures durante a própria actuação, por entre as doses abismais de talento e clássicos absolutos que o bom homem ia destilando, graças a uma palavrinha que não me saía da cabeça: saudade*. Porque, quase sem que me apercebesse disso, há já largos meses que não via um concerto Sami sem banda, o que sem qualquer desprimor para aquela belíssima gente que o acompanha, é a sua verdadeira praia. Digamos que é aquela praia onde o flor-caveirense faz nudismo à moda antiga, sem medo dos olhares ou do escaldão. Diz o povo que a mais genuína saudade é aquela que nos apanha desprevenidos. A ser verdade, fui atropelado por um camião de saudade e nem lhe vi a matrícula.
Enfim, poderia ficar aqui o resto do dia com metáforas mais ou menos rebuscadas para descrever o talento do tondelense mas não o faço por uma razão muito simples: a amizade que nos une. É que a paixão que tenho pelo talento do homem é de tão elevada grandeza que não me responsabilizo pelos elogios que me possam fugir dos dedos, e depois ainda calha ele ler isto e fica uma tensão homoerótica perfeitamente dispensável numa relação de amizade entre dois machos à moda antiga. E para isso já basta a malha aí em baixo.
Ah, e não é que, ao fim da noite, ou melhor, hoje de manhã, não fui para a cama, ou melhor, não comecei o dia, sem comer as ditas castanhas? Cortesia de um espaço que não sendo um bar, tem sido paragem obrigatória nos últimos tempos. Este ano só me faltou mesmo o vinho ainda não vinho. Para o ano é que é.


* Para quem não estiver familiarizado com o conceito, passo a explicitar: saudade é aquele palavra que as bandas de roque estrangeiras eram obrigadas, por contrato, a dizer quando vinham cá ao burgo tocar para mais de 1.000 pessoas, nos anos noventa. E tinha de ser dito com ar de quem já cá tinha estado antes e dado o melhor concerto das suas vidas. Opcionalmente podia ser seguido por um "I missed you?" ou por "This afternoon I went to Bairro Alto and listened to some Fado".

P.S. - Também não me estico mais porque já é terça e tenho de ir escrever o resto dos postais que queria ter escrito nestes últimos dias, fingindo que foram escritos nos próprios. Porque se isto é para existir, é para manter a disciplina do postal diário. E a disciplina é fundamental, como diz o pastor. Assim pelo menos já vou namoriscando com o conceito. E por falar em conceito, nessa mesma noite, sugeriu-se que alguns produtos (é o que chamo aos que são pagos) e conceitos (é o que chamo àqueles em que perco guito), nos quais tenho a minha quota parte de responsabilidade, seriam algo farsolas. Desminto-o categoricamente e sinto-me até ofendido que me achem capaz de tal abjecta falta à verdade. Agora vou escrever o postal de sábado que já é quase quarta.