segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Vermelhidão

Recentemente fui acometido de uma vermelhidão, uma irritação vá. Todos têm as suas. Mais ou menos cutâneas. Mais ou menos consentâneas (com a sua personalidade, entenda-se, e também porque aprecio deveras rimas). Há os que optam por reagir e os que não o fazem. Dentro dos que reagem existem dois sub-grupos fundamentais, ambos muito eficazes em termos do efeito espectacular, visualmente falando, que provocam: os que evitam o contacto com a fonte de irritação e os que, optando publicamente por não evitar o contacto com essa mesma fonte, conspiram nas suas costas com outros amigos médicos falhados, vulgo "dermatologistas", para tentar  aniquilar a fonte da irritação, com pomadinhas subtilmente aplicadas, sem que ela dê por isso. Hoje vou-me alongar sobre a primeira estripe acima referida, por ser a minha favorita: os que reagem evitando o contacto com a fonte de irritação (sobre as outras, aviso já, não faço ideia quando me irei alongar, mas alongar-me-ei inevitavelmente).   
Estas pessoas, à primeira vista, parecem tomar a atitude mais inteligente (no sentido básico da coisa, estilo queimei-me por isso não ponho mais as mãos no fogo, mas já lá vamos) e menos confrontacional. Puro engano. Os seus amigos e simpatizantes geralmente defendem-nos recorrendo ao argumento de que são seres humanos justíssimos e cheios de princípios, mais humanos que os outros, portanto, uma espécie de fiéis depositários da indignação do mundo (não podemos censurar os amigos porque, realmente, não é fácil arranjar argumentos, tirando uma malformação congénita, que justifiquem tantas rugas na testa, sobrolhos franzidos e lábios alvitados). Estas pessoas são facilmente identificáveis pelo uso mais que abusivo de expressões como "detesto hipocrisias", "não estou para cinismos" ou, a minha favorita, quando aparentemente se medem pela quantidade de goma em si aplicada, "tenho a personalidade muito vincada". Começam também muitas vezes as suas intervenções com a expressão "é assim", acompanhada de um movimento assertivo de uma das mãos na direcção do interlocutor (o que por vezes se torna assustador, mas só até nos apercebermos que faz parte do tal efeito espectacular desejado). Na verdade, estas pessoas são praticantes de uma espécie de medicina pró-activa. Não no sentido mais comum de prevenção das ditas irritações mas mais no sentido de definirem antecipadamente quais os organismos que lhes causarão irritação para só depois passarem à fase de fundamentação da dita. Isto, sem nunca se aproximarem sequer da suposta causa da sua suposta irritação. Um ambiente controlado, portanto, ideal para uma patologia auto-infligida. Há duas grandes desvantagens em nos darmos socialmente (sexualmente ou assim, não há problema) com estas pessoas, uma de ordem física e outra de ordem psicológica, muito especialmente se formos assumidamente também amigos ou pelo menos conhecidos da causa da irritação (facto que muitas vezes, os amigos destas pessoas tentam, inteligentemente diga-se,  esconder a todo o custo). A desvantagem de ordem psicológica é que sendo amigo/conhecido da causa da irritação, passamos a ser unicamente um veículo privilegiado para estas pessoas sacarem informações ou fomentarem pequenos mal-entendidos linguísticos que venham reforçar, ou melhor validar, as suas teorias previamente elaboradas em casa (regra geral no sofá, de luzes apagadas, com a lareira a crepitar, passando a mão pelo pêlo do gato). E não vale a pena alimentarem a esperança que numa determinado ocasião isso não acontecerá, porque mais tarde ou mais cedo este tipo de  pessoas arranja sempre maneira da conversa descambar na sua causa de irritação (persistência é outras das suas qualidades). E quando isso acontece, qualquer hipótese de mudar de assunto está mais que posta de parte (e subtileza não é uma das suas qualidades). A desvantagem de ordem física é que este tipo de discurso com que nos brindam não é retórico (é quase, mas, infelizmente, não totalmente), e exige de quem assiste, ou por vezes até, de quem está só de passagem (se for inteligente), um constante e regular abanar de cabeça, que está para estas pessoas, em termos de validação, como um artigo/entrevista no ípsilon para um aspirante a artista cá do burgo. Atenção, que este gesto que vos pode parecer simples, quando repetido ad eternum é altamente desgastante para o pescoço (o abanar de cabeça, não o artigo/entrevista ao ípsilon), e só um treino ao nível de um piloto de F1 vos permitirá sair mais ou menos ileso de uma conversa à séria com uma destas pessoas (nalguns momentos mais sinuosos da conversa podem chegar a ter de suportar forças superiores a 2G's). Vão por mim, que já vi muito pescocinho bem intencionado ceder inapelavelmente.