quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Pós-cidadania

 

Depois de se ver Citizen Kane pela primeira vez, há uma tendência quase fatal para se minimizar o resto da obra de Orson Welles. Uma daquelas coisas quase inconscientes perante o assombro de cinema que se acabou de ver. A mim aconteceu-me precisamente isso, e pergunto, como não fazê-lo? Todo o mito que envolve tanto o homem como o filme e que muito dificilmente não nos chega primeiro do que a obra propriamente dita, para não falar do pormenor do raio da película, pura e simplesmente, suportar essa expectativa com uma perna às costas e inclusive superá-la sem suar, torna-o realmente impossível. Quanto muito, no auge do encantamento, pensa-se em revê-lo e não em ir à procura de outro filme de Welles.
Mas a verdade é que Citizen Kane é a primeira longa de um gajo que a escreveu, realizou e interpretou, portanto, das duas uma, ou foi um gigantesco (e gigantesco é um eufemismo) golpe de sorte ou tem que haver mais qualquer coisa na restante carreira do homem, por menos ortodoxa que esta tenha sido. Ao longo dos tempos, fui tentando livrar-me desse hipnotismo (embora não tão esforçadamente como gostaria) e vasculhar por outro tesouro na sua filmografia: Mr. Arkadin, The Trial (belíssima adaptação de Kafka com Anthony Perkins) ou o jogo de espelhos de The Lady From Shanghai, e embora não passe despercebida a marca de Welles em muitos desses filmes, são candidatos perfeitos àquele velho cliché que diz que "um .... menor continua a ser melhor que a maioria".
Até que muito recentemente, ele me apareceu: The Magnificent Ambersons, de 1942, ou seja, a longa-metragem imediatamente a seguir à de estreia, facto cronológico que não será pura coincidência. Não obstante a estória não ser tão imediatamente apelativa quanto a do cidadão, são 88 minutos estrondosos por si só, que refinam, e atrevo-me a dizer, levam ainda mais longe todos os predicados que fizeram e continuam a fazer de Citizen Kane um dos mais importantes marcos da sétima arte. Desde a exploração da narrativa não-linear, que ainda fascina, e neste caso não tanto pela progressão sedutora que esses saltos narrativos vão tecendo (algo a que estamos mais que habituados hoje em dia), mas pela suavidade com que são feitos, cometendo a proeza de nos levar de registos puramente dickenianos a outros quasi-expressionistas sem que o cheguemos a estranhar, à edição (sim bro, é mais criativa do que eu queria admitir), ou à simples arte de decidir onde colocar a câmara, independentemente do movimento que possa vir a executar (em Welles o ponto de partida é sempre mais importante que o de chegada), está lá tudo. Que repousasse há uns anos na minha estante enquanto o procurava por todo o lado é só a rosebud no topo do bolo.