sexta-feira, 5 de junho de 2009

A tragédia calça luvas


As palavras que se ouvem mais vezes ao longo de Tyson, o belíssimo documentário de James Toback, são "medo" e "assustado". Que não casam lá muito bem com auto-epítetos como "sou feroz, eu quero os vossos corações, eu quero comer as vossas crianças" ou "sou o mais brutal e o mais vicioso, sou o campeão mais cruel que alguma vez houve".
É desse contraste que vive o filme. Temos Mike Tyson, agora com cerca de quarenta anos, longe da ribalta e mais maduro, a rever a sua carreira e vida pessoal, justificando os erros cometidos com o facto de ser apenas um miúdo franzino e de óculos que cresceu com problemas de saúde, ou seja, que levava porrada que se fartava, criado por uma mãe promíscua e um pai ausente num bairro duro, onde cedo acedeu ao mundo do crime e por arrasto aos reformatórios para jovens. Um rapazinho assustado portanto, muito assustado.
E é fascinante ouvir a versão de "Iron Mike". A fragilidade que emana da sua figura monstruosa (dos olhos sobretudo), a emoção que o deixa quase K.O. quando se refere às poucas pessoas que o acarinharam e já partiram (principalmente o seu mítico treinador Cus d'Amato, o pai que nunca teve, e que lhe injectou a confiança necessária para se tornar no campeão que viria a ser), a obsessão em dominar mulheres poderosas, em "quebrá-las" sexualmente, as tentativas (por vezes ridículas) de imitar o ídolo Ali na retórica arrogante, a facilidade com que os vários parasitas que o bajulavam o sugaram financeiramente. Tudo isto e muito mais, expresso através do seu vocabulário sui generis.
Mas mais fascinante ainda, é irmo-nos apercebendo, pouco a pouco, que "Kid Dynamite" aprendeu exactamente zero durante essa vida inteira de altos e baixos. É ainda o mesmo rapazinho confuso, a quem um dia explicaram que através do boxe poderia ser respeitado e ultrapassar as desvantagens do berço e da cor. Quanto muito aprendeu (mas muito ligeiramente), a disfarçar a agressividade, a besta em que entretanto se tornou e que se esconde naquele coração.
Porque quando a película acaba, não restam quaisquer dúvidas que, não fosse o boxe um desporto altamente desgastante e exigente fisicamente (especialmente no caso de Mike, que não fica a dever muito à inteligência e praticava um boxe brutal do ponto de vista físico), ainda hoje por aí andaria, em êxtase, a pulverizar adversários, a dominar mulheres e a cometer exactamente os mesmos erros, um por um. Nas sua palavras (se não me engano, no seu regresso aos ringues, depois de ter cumprido pena de prisão pela famosa violação de uma concorrente a Miss Black América): "Se eles querem que eu seja lixo e escumalha, eu serei lixo e escumalha. Mas serei lixo e escumalha angelical". É a vitória possível.