sexta-feira, 19 de junho de 2009

O teu sangue é nosso


Ao final da tarde fui ver o Shotgun Stories (Histórias de Caçadeiras). Ainda nem me tinha levantado da cadeira e já várias certezas me invadiam sem pedir licença. Primeiro, que tinha acabado de ver um belíssimo filme, tão bem realizado quanto escrito (ambos pelo estreante Jeff Nichols); segundo, que o mesmo Jeff, ou não tem irmãos, ou acobardou-se, ou até, poderá ter caído na tentação do final muito em voga no chamado novo cinema alternativo (anti-clímax com um toque de esperança). De qualquer das formas, partiu-se-me o coração ao chegar ao fim.
Porque ele nunca poderia ter-lhes feito aquilo que fez. Não depois de tão brilhantemente ter conduzido esta estória de guerra feudal entre dois grupos de meios-irmãos. Son, Boy e Kid (assim mesmo, porque nenhum dos progenitores os amou o suficiente para lhes dar um nome decente) de um lado e Mark, Cleaman, Stephen e John (a família pós-regeneração cristã que o pai criou) do outro. Todas as personagens têm o espaço, e acima de tudo, o silêncio necessário para crescerem no écran (a preocupação meticulosa com as personagens secundárias chega a colocar-nos no ponto em que estamos dispostos a seguir qualquer uma delas pelo resto do filme). E para além disso há o incrível Michael Shannon, uma fisicalidade que poucos têm em frente a uma câmera, e que constrói um Son assombroso (provavelmente o primeiro "pai" da história do cinema que se chama "filho"). O andar desamparado, o peso daquelas misteriosas marcas nas costas, o maxilar rígido, as lágrimas que nunca caem.
Quando Son jaz inconsciente no hospital, Annie, a sua mulher (que o tinha abandonado, levando com ela o filho dos dois no início), pergunta desesperada a Boy: "Porque é que isto tinha de acontecer?". Esta é a única interrogação durante todo o filme sobre o porquê de tal violência, e não é inocentemente que é ela a colocá-la. Porque ela é a única personagem que pode pôr essa questão. Todos os irmãos nesta estória, uns mais depressa que outros, há muito que carregavam essa resposta com eles. Resposta alías, a uma pergunta que nunca tiveram de colocar. Só ela, filha única, não a poderia saber.
Mas aparentemente, Jeff Nichols também não. E permite pouco depois, que Annie incuta algum bom-senso na cabeça do único irmão ainda em condições de se vingar, quebrando assim o ciclo vicioso de violência. Nunca, mas nunca, poderia ter sido ela a fazê-lo (qual olhar distante e imparcial qual quê! Este filme não é sobre olhares distantes, é sobre irmãos, sobre carne).
Tanto a vida como a morte são feitos de sangue. E se há batalha que alguns de nós podem dar como perdida, é a da temperança. Perdida à nascença, embora não necessariamente à nossa.