segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Esgar rotineiro

Anda um gajo uma vida inteira a tentar cultivar rotinas só em relação a hábitos socialmente censuráveis para de repente, quando pela primeira vez se presta a uma rotina considerada digna de um homenzinho responsável na maioria dos países ocidentais, se aperceber que nestas residem respostas a questões tão pertinentes como por exemplo: qual a melhor hora do dia para ouvir o vulgarmente denominado White Album? e melhor ainda, qual a verdadeira missão desse álbum esbranquiçado neste planeta? Acontece que o dito duplo disco, e mais concretamente a While My Guitar Gently Weeps, tenho agora a certeza, foram paridos para este mundo com o simples propósito de me acompanhar na saída de casa, especificamente, no meu carro, que nunca julguei ser veículo merecedor de tal honraria, não obstante o impecável gosto musical que vem demonstrando há já largos anos. Puxa-se dos óculos de sol, abre-se bem os vidros (todos), engata-se a primeira e ainda a embraiagem está a subir quando o dark horse dispara: "I look at you all, see the love, there that's sleeping, while my guitar gently weeps, I look at the floor, and I see, it needs sweeping, still my guitar gently weeps" (o que por si só já é o propósito da vida condensado em duas linhas, mas adiante). Depois disto não oiço mais nada. O resto da viagem sou eu a visualizar, em super slow-motion, o esgar de George Harrison, com a barba e o bigode dos setentas, no exacto momento em que acaba de pronunciar weeps e se prepara para fazer a seis cordas choramingar (e não, na minha cabeça não são quatro Beatles, é Harrison sozinho que faz tudo, embora a formação vá variando ao longo do disco). Quando caio de novo em mim, o carro está está estacionado e eu a labutar como se fosse um cidadão respeitável, o que, a grosso modo, significa que embora conheça perfeitamente o meu local de trabalho, não faço a mínima ideia de como lá chegar.
 
 

P.S. - Esta versão é de um concerto em  1971 (um bom ano, quando ainda nenhum Beatle tinha quinado) pelo Bangladesh. Não sei como é que isso ficou, mas acredito que Harrison os tenha salvo. Os bangladeshianos, claro, que com os Beatles, como se sabe, a coisa não tem corrido por aí além.