Todas as manhãs dou 62 chibatadas nas costas, ainda em jejum, como parte da minha penitência diária por ainda não ter visto Leonard Cohen ao vivo (duas por cada faixa do Songs of Leonard Cohen e do Songs of Love and Hate; uma por cada faixa do Songs From a Room e do New Skin for the Old Ceremony, meia chibatada por cada faixa do Death of a Ladies' Man e, nos dias mais pró-Israel, uma pela totalidade do Recent Songs). Mas, verdade seja dita, o bardo canadiano também não me tem facilitado em nada a tarefa. Há dois anos decide tocar em Lisboa no mesmo dia que em o Lou Reed por cá se apresentava, situação que eu engenhosamente resolvi optando ir ver os My Bloody Valentine a Madrid. Daí para a frente, nunca mais se esqueceu de passar todos os anos pelo Pavilhão Atlântico, não necessariamente para um concerto, mais para um evento em que dá seguimento a esse bonito processo de voltar a encher a carteira que parece que anda demasiado leve por estes dias, cortesia de um contabilista que por certo nunca terá ouvido os seus discos, para ter incorrido em tal heresia (aproveitando a passagem cá pelo burgo, atrevo-me a deixar-lhe uma sugestão: Old Jerusalem, não só ouviu os discos como já roubou tudo o que podia, era menos isso com que Cohen tinha de se preocupar). Aliás, processo esse, que considero da mais elementar justiça que se concretize, por duas razões muito simples: um homem com a lírica e a dicção impecável do Cohen, não deve ter de pensar em finanças, por mais que isso contrarie a sua condição judaica, quando encosta a cabeça no travesseiro, somente em Deus e nas mulheres; um homem que consegue com a mesma naturalidade, comer a Janis Joplin e usar os fatos completos (incluí o colete, atenção) mais sofisticados do mundo não devia sequer ter de se deslocar para nos vir assaltar (devia ser ao contrário, aproveitando nós a ocasião para lhe agradecer por ser a consciência amargurada da humanidade), quanto mais ter de passar pela vergonha de ter disfarçar esse assalto sob a forma de um concerto.
Pode ser que terminado o processo na carteira de Cohen, haja oportunidade para um concerto mais condizente com a sua música e com um preço menos condizente (os únicos lugares no Atlântico em que se pode vir de lá desconfiado de que se esteve num concerto são só 75 €) com um festival de 5 dias. Mas há que encarar o facto de que isso muito dificilmente acontecerá. E até faz sentido que assim seja. Por que raio é que o homem haveria de nos querer aturar, ainda por cima em pessoa, quando for de novo rico? É tão óbvio para ele como para nós que não o merecemos, para além de que pode perfeitamente desempenhar o seu papel de consciência da humanidade a partir do conforto da sua mansão.
Cohen é mesmo assim: mais perda do que ganho, mais frustração do que satisfação. Voltando às chibatadas pré-pequeno-almoço, atente-se no seguinte: se qualquer um de nós se dedicar a uma boa sessão de auto-flagelação ao som de, por exemplo, Bob Dylan, o mesmo não nos soará necessariamente melhor por esse facto, ou se repetirmos o mesmo processo, digamos com os Beatles, também não me parece que retiraremos daí qualquer vantagem não identificada à partida. Mas com Cohen, a coisa muda de figura, aquilo é música (aquilo são palavras) que aponta ao coração (não ao metafórico, mas àquele órgão ensanguentado que labuta noite e dia), e quanto mais flagelada a carne, quantas mais feridas abertas, mais lhe facilitamos o inevitável caminho que tem de percorrer. Não serena a alma nem a carne, penetra-as inclementemente com um só objectivo: as nossas vísceras. Basta um desgosto seguido de uma audição de um qualquer disco do homem, para nos darmos conta disso mesmo, de que se instalou qualquer coisa lá dentro que nunca mais sai.
Naturalmente que não estarei presente, como não estive o ano passado, nesse evento que é uma experiência, em termos sónicos (expressão arriscada tendo em conta que me refiro ao Atlântico), tão interessante como um concerto dos Queen numas águas-furtadas no Bairro Alto. Vou antes vendo o Bonnie Prince Billy quando ele por cá vai passando, assim como assim, já cá estão as feridas e mais vale aproveitar.
Naturalmente que não estarei presente, como não estive o ano passado, nesse evento que é uma experiência, em termos sónicos (expressão arriscada tendo em conta que me refiro ao Atlântico), tão interessante como um concerto dos Queen numas águas-furtadas no Bairro Alto. Vou antes vendo o Bonnie Prince Billy quando ele por cá vai passando, assim como assim, já cá estão as feridas e mais vale aproveitar.