terça-feira, 30 de novembro de 2010

Ansiosamente, aguardo

Sou, por estes dias, um homem extremamente ansioso. Espero uma chamada de um senhor que está a sujeitar  o meu mac a uma baterias de testes, cujos pormenores preferi não saber (mas que desconfio que sejam invasivos em último grau) para não correr o risco de nunca mais o olhar, quanto mais tocar, da mesma maneira. Será o conteúdo dessa chamada a decidir a velocidade (sim, que isto é inevitável) com que receberei cá em casa uma coisa de cor tangerina e um outro aparelho a válvulas destinado a amplificar o ruído, ora popular, ora pedra, emitido por essa mesma coisa que, nunca é demais voltar a referir, é tangerina.
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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Vermelhidão

Recentemente fui acometido de uma vermelhidão, uma irritação vá. Todos têm as suas. Mais ou menos cutâneas. Mais ou menos consentâneas (com a sua personalidade, entenda-se, e também porque aprecio deveras rimas). Há os que optam por reagir e os que não o fazem. Dentro dos que reagem existem dois sub-grupos fundamentais, ambos muito eficazes em termos do efeito espectacular, visualmente falando, que provocam: os que evitam o contacto com a fonte de irritação e os que, optando publicamente por não evitar o contacto com essa mesma fonte, conspiram nas suas costas com outros amigos médicos falhados, vulgo "dermatologistas", para tentar  aniquilar a fonte da irritação, com pomadinhas subtilmente aplicadas, sem que ela dê por isso. Hoje vou-me alongar sobre a primeira estripe acima referida, por ser a minha favorita: os que reagem evitando o contacto com a fonte de irritação (sobre as outras, aviso já, não faço ideia quando me irei alongar, mas alongar-me-ei inevitavelmente).   
Estas pessoas, à primeira vista, parecem tomar a atitude mais inteligente (no sentido básico da coisa, estilo queimei-me por isso não ponho mais as mãos no fogo, mas já lá vamos) e menos confrontacional. Puro engano. Os seus amigos e simpatizantes geralmente defendem-nos recorrendo ao argumento de que são seres humanos justíssimos e cheios de princípios, mais humanos que os outros, portanto, uma espécie de fiéis depositários da indignação do mundo (não podemos censurar os amigos porque, realmente, não é fácil arranjar argumentos, tirando uma malformação congénita, que justifiquem tantas rugas na testa, sobrolhos franzidos e lábios alvitados). Estas pessoas são facilmente identificáveis pelo uso mais que abusivo de expressões como "detesto hipocrisias", "não estou para cinismos" ou, a minha favorita, quando aparentemente se medem pela quantidade de goma em si aplicada, "tenho a personalidade muito vincada". Começam também muitas vezes as suas intervenções com a expressão "é assim", acompanhada de um movimento assertivo de uma das mãos na direcção do interlocutor (o que por vezes se torna assustador, mas só até nos apercebermos que faz parte do tal efeito espectacular desejado). Na verdade, estas pessoas são praticantes de uma espécie de medicina pró-activa. Não no sentido mais comum de prevenção das ditas irritações mas mais no sentido de definirem antecipadamente quais os organismos que lhes causarão irritação para só depois passarem à fase de fundamentação da dita. Isto, sem nunca se aproximarem sequer da suposta causa da sua suposta irritação. Um ambiente controlado, portanto, ideal para uma patologia auto-infligida. Há duas grandes desvantagens em nos darmos socialmente (sexualmente ou assim, não há problema) com estas pessoas, uma de ordem física e outra de ordem psicológica, muito especialmente se formos assumidamente também amigos ou pelo menos conhecidos da causa da irritação (facto que muitas vezes, os amigos destas pessoas tentam, inteligentemente diga-se,  esconder a todo o custo). A desvantagem de ordem psicológica é que sendo amigo/conhecido da causa da irritação, passamos a ser unicamente um veículo privilegiado para estas pessoas sacarem informações ou fomentarem pequenos mal-entendidos linguísticos que venham reforçar, ou melhor validar, as suas teorias previamente elaboradas em casa (regra geral no sofá, de luzes apagadas, com a lareira a crepitar, passando a mão pelo pêlo do gato). E não vale a pena alimentarem a esperança que numa determinado ocasião isso não acontecerá, porque mais tarde ou mais cedo este tipo de  pessoas arranja sempre maneira da conversa descambar na sua causa de irritação (persistência é outras das suas qualidades). E quando isso acontece, qualquer hipótese de mudar de assunto está mais que posta de parte (e subtileza não é uma das suas qualidades). A desvantagem de ordem física é que este tipo de discurso com que nos brindam não é retórico (é quase, mas, infelizmente, não totalmente), e exige de quem assiste, ou por vezes até, de quem está só de passagem (se for inteligente), um constante e regular abanar de cabeça, que está para estas pessoas, em termos de validação, como um artigo/entrevista no ípsilon para um aspirante a artista cá do burgo. Atenção, que este gesto que vos pode parecer simples, quando repetido ad eternum é altamente desgastante para o pescoço (o abanar de cabeça, não o artigo/entrevista ao ípsilon), e só um treino ao nível de um piloto de F1 vos permitirá sair mais ou menos ileso de uma conversa à séria com uma destas pessoas (nalguns momentos mais sinuosos da conversa podem chegar a ter de suportar forças superiores a 2G's). Vão por mim, que já vi muito pescocinho bem intencionado ceder inapelavelmente.
                     

domingo, 28 de novembro de 2010

Do contorno

Louis Anquetin "Avenue de Clichy" (1897)

sábado, 27 de novembro de 2010

O universo dos caçadores de veado

É um universo grande, tipo o outro, aquele mais mainstream, de que se fala mais. Em nenhum dos dois é o número que impressiona, mas o facto de estar em constante expansão, e a atracção que isso exerce, um renovado convite para os confins das suas fronteiras, só para lá chegarmos e percebermos que o comboio há muito que seguiu viagem. A diferença é que neste universo não há cá big bangs, só pequenas implosões, controladas, cirúrgicas. Não, definitivamente os universos não são só um grande desperdício de espaço.



sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Copia Conforme

No já longínquo ano de 1992, um emocionado Kiarostami recebeu o Prémio Internacional Roberto Rossellini pela realização de E a Vida Continua. Em 2010, é Kiarostami quem retribui a honra, convocando Viaggio in Italia para pano de fundo de mais um desconcertante ensaio ao seu estilo, ou seja, sobre a arte, sobre a vida, mas disfarçado de filme. Desta feita, com o pormenor genial de usar esse jogo que faz entre o filme de Rossellini e o seu, como uma metáfora gigante para a questão central do filme: o mérito da cópia perante o original.  Mas não o faz por oposição, porque isso seria muito simples (a dada altura, a personagem de Binoche deixa escapar qualquer coisa como "não há nada de simples em ser-se simples"), fâ-lo antes mergulhando também o espectador na dúvida, largando-o de cabeça no cerne da discussão das personagens, como quem ridiculariza a questão. Tal como Rossellini  em tempos, também Kiarostami nunca nos deixa esquecer que a vida e arte não são dissociáveis. Cada uma insufla sentido na outra.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Naperãos (a banda)

Os Naperãos não são a banda mais coesa do mundo (não ensaiam o suficiente) nem ensaiam o suficiente (não gostam muito de mim), e nem sequer gostam muito de mim (por causa das músicas que os faço tocar). Os Naperãos usam penas às cores no cabelo, não por serem pavões (embora por vezes se pavoneiem) mas porque gostavam de ser uma espécie de Julian Casablancas, se o mesmo fosse filho bastardo da Patti Smith (o que até não é assim tão improvável) e do Keith Richards (menos provável, desconfio do efeito que uma vida de calças tão justas terão na fertilidade dum homem). Os Naperãos não acreditam que a cantiga seja uma arma mas que baquetas e guitarras o são certamente. Um dos Naperãos usa regularmente uns ténis all-star dos The Who, desconfia-se que para fazer pendant com a t-shirt dos The Who a que outro Naperão também dá uso regular. Que se saiba, nenhum d'Os Naperãos gosta dos The Who. Os Naperãos não são uma banda de trad-roque e fogem como o diabo da cruz dessa ideia. Os Naperãos por vezes dispensam a minha presença para tocar a minha música. Os Naperãos esperam ansiosamente a manhã de nevoeiro em que chegarão triunfalmente, e por esta ordem,  D.Sebastião e o FMI. Os Naperãos não gostam de pessoas a olhar para eles enquanto tocam. Os Naperãos estiveram muito empenhados na campanha presidencial de Fernando Nobre até perceberem que ele não é "o gajo da EMI" e não lhes vai arranjar um contrato discográfico.  Os Naperãos decidiram então votar Obama. Os Naperãos são uma boysband roque. Os Naperãos são Filipe da Graça, Didi e Nuno Pontes, e se amanhã à noite houvesse uma recriação da Segunda Guerra Mundial no Maxime, Os Naperãos soar-vos-iam como as V-1 alemãs mergulhando sobre Londres.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Das facturas caídas em esquecimento

Pequena canção escrita à luz da vela. A ideia é ir-se repetindo e subindo de intensidade até o problema estar resolvido.

Cortaram-me a luz
Deixaram-me na escuridão
Tenho de ir à loja
À loja do cidadão
Mas lá tratam-nos mal
Como atrasados
Ao que parece, a luz
É só para seres iluminados

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Sorte madastra

Uma feliz conjugação de factores permitiu-me chegar quase ao fim de 2010 sem ter alguma vez ouvido, ou pelo menos sem ter noção de ter ouvido (o que ainda tem mais valor), Florence and the Machine.
Uma infeliz conjugação de factores permitiu-me chegar quase ao fim de 2010 sem ter alguma vez ouvido, e não é possível que o tenha ouvido sem que tenha tido noção disso, Nuggets: Original Artyfacts From the First Psychedelic Era 1965-1968, que é capaz de ser para aí a melhor compilação de sempre para se oferecer no Natal (a alguém que ainda não tenha o Abba Gold ou o Queen Gold, claro).

 

domingo, 21 de novembro de 2010

O suíço pouco neutro

Cuno Amiet "Selbstbildnis in Rosa" (1907)

sábado, 20 de novembro de 2010

Acerca de escudos

Stanley Motss: The President will be a hero. He brought peace.
Conrad Brean: But there was never a war.
Stanley Motss: All the greater acomplishment.

em Wag the Dog, argumento de David Mamet e Hilary Henkin a partir de American Hero, de Larry Beinhart

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Conto de fadas

Na península coreana, a norte do paralelo 38, continua o conto de fadas. O jovem Kim Jong-Un continua a ser preparado pelo pápá para o suceder no trono comunista da Coreia do Norte e o mundo comove-se perante estas públicas demonstrações de afecto e carinho de Kim Jong-Il para com o seu filho. O homem mostra que por trás daquela expressão de vilão de banda desenhada existe um coração, e um coração que não é de pedra. Um coração que não tem medo de gritar para quem quiser ouvir: "O meu filho cresceu e estou muito orgulhoso dele. Está um homenzarrão. Não confiaria em mais ninguém para continuar a matar à fome o nosso povo. Este puto é lindo!(apertando-lhe a bocheca)". Depois das primeiras aparições públicas ao lado do pápá babado e da meteórica carreira militar que o tornou general em uma semana (parece que o pai tem cunhas no exército), eis que chega agora o momento da emancipação e do rapaz cumprir essa ancestral versão comunista de ritual de passagem à maioridade: a sua primeira purga. E como vítimas, nada melhor que os oficiais do exército que foram fiéis toda a vida ao seu pai, tudo gente de quem o rapaz cresceu rodeado, ou seja, o que os Kims apelidam de amigos (nas purgas como em muitas experiências de vida, é sempre mais fácil a primeira vez ser entre amigos, ajuda a diminuir o nervosismo).
Espero que algures em Hollywood alguém esteja a preparar um argumento desta comovente estória de amor. E que Baz Luhrmann seja o realizador escolhido para o projecto. Se o homem conseguiu incutir o glamour e a grandiosidade que se viu nos aborígenes australianos nem quero imaginar o que será capaz de fazer com estes selvagens.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Da loucura do mundo moderno

Dizem que somos cada vez mais informados mas sabemos cada vez menos. É mentira. Há é muita coisa que gostávamos de não saber. Dizem que se chama a isso crescer. Também é mentira. Crescer é só um dos resultados possíveis. Às vezes escolhemos não o fazer. Mas somos curiosos. Como gente crescida. E  sabemos que a curiosidade só mói. De tão natural o caminho, achamos que a estrada é que nos percorre. Não nos desviamos do caminho. Não nos conseguimos desviar do caminho. Quando nos desviamos é bruscamente. Às vezes precisamos de capotar. Sabemos que não vamos morrer. Isso é só depois de vivermos. Seja como for, isto do viver nunca acabou bem para ninguém. Conhecemos bons homens. Conhecemos boas mulheres. Conhecemos mais bons homens que boas mulheres. Talvez porque sabemos medi-los melhor. Mas não confundimos as leis dos homens com a Lei do Sangue. Aceitamos a sua violência. Abraça-mo-lá até. Dá-nos paz. Quando vemos um muro derrubado, reconstruímo-lo. Temos que sentir como é derrubá-lo. Lamentamos se sentimos muito. Sentimos muito se lamentamos.  Acreditamos na palavra. Acreditamos na palavra amizade. Acreditamos no amor. Mas não na palavra amor. Sabemos menos do que achamos saber. E queremos saber mais sobre isso. Levamo-nos muito a sério. Mas não damos importância nenhuma a isso. Gostamos de gozar com os outros. Gostamos de gozar connosco próprios. Dizem que se chama a isso humor. Também temos disso.



quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O teledisco, pt.2

Foto de Fred Montagne

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O fogo que tudo consome


Foi um zapping completamente displicente - um daqueles em que a televisão só lá está para receber o olhar vazio, por uns breves instantes desviado do ecrã do computador, enquanto se matuta noutra coisa - que me levou a um grande plano de um homem que parecia em pleno processo de implosão. A câmera tremia como varas verdes (não escondia a zoomada, muito pelo contrário) e o boné e casaco a condizer denunciavam a filiação desportiva do homem. O olhar intenso denunciava a presença de mais alguém na sala e homem algum provoca uma implosão daquelas noutro, só uma mulher. Indícios portanto de estar a decorrer um diálogo veemente, a vulgar discussão, entre um casal. Uns segundos depois, poucos mas de invulgar estoicismo da câmera que perscrutava cada milímetro da cara daquele homem (ou talvez a simples atracção pelo desastre iminente), uma voz chegava finalmente de fora de campo, feminina, seca, magoada. Não era bem um diálogo, era um monólogo entrecortado por trejeitos e esgares e um olhar que oscilava entre o fulminante e o cabisbaixo, que ora projectava ora procurava o seu reflexo na alcatifa em que o homem raspava energicamente os pés. Quando o silêncio se instalou, por um segundo que ressoou pela eternidade fora, tornou-se audível o palco de batalha que era agora o corpo daquele homem. De um lado, a rigidez do maxilar e dos lábios engelhados, e do outro, o carácter que espreitava ao fundo da garganta, recusando-se a ceder às repetidas deglutições em seco. O combate terminou com uma meia vitória do carácter (já vão perceber), e o homem disparou com a força de quem se liberta de  anos de agrilhoamento: "mulher alguma fala assim comigo". E tão depressa o disse como lhe virou as costas (não há vitória possível quando se tem de virar as costas a uma boa mulher). Depois mudei de canal. Não me pareceu nada bonito da minha parte estar a partilhar  um momento tão íntimo daquele casal sem primeiro os conhecer melhor. Mas a geografia estava já bem demarcada e aquele calor húmido, aquele cheiro a terra queimada não enganava. Estávamos no território de Tennessee, de Faulkner, de O'Connor. Estávamos no Sul.
Assim conheci Coach Taylor e a sua mulher. Assim entrei em Friday Night Lights. Que, naturalmente, como qualquer coisa bem escrita, é tanto sobre high school football como o The Wire era sobre polícias e ladrões.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

As garotas não sabem playar

No outro dia, uma amiga fez-me um reparo. Disse-me a garota, que as músicas, que por vezes adornam os postais deste blogue, deveriam estar devidamente identificadas e o respectivo play deveria estar colocado no início do postal para que mais eficazmente cumprissem o propósito a que ela as julga destinadas: banda-sonora para acompanhar a leitura do mesmo. Ao que eu respondi: já agora também têm de ter a duração que eu preveja que tu leves a ler o postal, não?
Uma hora, quatro cervejas (tá bem, tá), e muitos paninhos quentes depois, dei por mim a fundamentar a minha opção e a, inevitavelmente, regressar à estaca zero (em termos de paninhos quentes): a música não está identificada porque eu sei perfeitamente qual é, o play está no fim do postal porque é quando a escolho para ouvir enquanto vou ler outros blogues bem mais fixes do que o meu, o que, convenhamos, não é o caso do teu, pois não?
Para melhor deglutição, minha cara, aviso que há um play no fim deste postal, que o som que reproduzirá serão os Deerhunter a tocar a Strange Lights ao vivo (ou a rebentar com um palco, mas isto já sou eu), sugerindo ainda que que leves exactamente 7:29 a ler este postal. Beijinhos.

 

domingo, 14 de novembro de 2010

Les XX

Georges Lemmen "La Vue de La Tamise" (1892)

sábado, 13 de novembro de 2010

A noite do santo não mártir II

No postal de ontem (eheheh) esqueci-me de referir um dos efeitos secundários mais recorrentes (em mim, pelo menos) depois do consumo de uma actuação de Samuel Úria solo style e do qual também já não tinha memória: a compulsiva escrita de letras novas. Ainda o homem não tinha acabado de tocar e já eu sacava do telemóvel para tentar dar vazão à torrente que começava a formar-se na minha cabeça. Se valem alguma coisa ou não, já é outra questão completamente diferente. Parece que o talento inspira e o importante é ter fé (proteste ela ou não).

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A noite do santo não mártir

Ontem foi noite de S.Martinho, o que por estes dias não quer dizer absolutamente nada, tirando o facto de ser mais uma desculpa para se embarcar em noites que não acabam. Um bocado como a passagem de ano sem a rua cheia de pessoas com flutes de plástico na mão e sem imagens de foguetes a rebentar nos céus de Sydney ao meio-dia (e que, dada a proximidade, aproveito para voltar a explicar que é a melhor altura do ano para um gajo se pirar para o estrangeiro, coisa que infelizmente só percebi há poucos anos, mas felizmente antes de ter putos para me impedirem de ir para o estrangeiro ou para me multiplicarem a factura de ir para o estrangeiro, ou até para, como me confessam alguns amigos mais saudosistas, tirarem a piada ao estrangeiro) ou como os santos populares, sem os manjericos e aquela coisa lisboeta de sociedade feudal que se está a cagar para as classes sociais por uma noite. É que já quase ninguém finge sequer que está interessada em comer castanhas ou em beber vinho, cuja principal qualidade nesse mesmo dia é ainda não ser vinho. Mas adiante.
Quis a boa gente do Botequim (qualquer dia levo para lá o mac e tal e faço daquilo a minha sala) e quis o Samuel Úria que tivéssemos direito a uma desculpa bem melhor para celebrar o Yom Kipur ou lá o que era aquilo ontem: nada mais nada menos que um concerto sem amplificação do próprio, no dito espaço. Ora, nenhuma pessoa com dois ouvidos, ou até mesmo só com um, poderá discordar do facto de que isto são excelentes notícias e garante de uma noite melhor passada do que a maioria das que compõem as suas tristes e vazias vidas. Mas a verdadeira excelência de tais notícias só me chegou algures durante a própria actuação, por entre as doses abismais de talento e clássicos absolutos que o bom homem ia destilando, graças a uma palavrinha que não me saía da cabeça: saudade*. Porque, quase sem que me apercebesse disso, há já largos meses que não via um concerto Sami sem banda, o que sem qualquer desprimor para aquela belíssima gente que o acompanha, é a sua verdadeira praia. Digamos que é aquela praia onde o flor-caveirense faz nudismo à moda antiga, sem medo dos olhares ou do escaldão. Diz o povo que a mais genuína saudade é aquela que nos apanha desprevenidos. A ser verdade, fui atropelado por um camião de saudade e nem lhe vi a matrícula.
Enfim, poderia ficar aqui o resto do dia com metáforas mais ou menos rebuscadas para descrever o talento do tondelense mas não o faço por uma razão muito simples: a amizade que nos une. É que a paixão que tenho pelo talento do homem é de tão elevada grandeza que não me responsabilizo pelos elogios que me possam fugir dos dedos, e depois ainda calha ele ler isto e fica uma tensão homoerótica perfeitamente dispensável numa relação de amizade entre dois machos à moda antiga. E para isso já basta a malha aí em baixo.
Ah, e não é que, ao fim da noite, ou melhor, hoje de manhã, não fui para a cama, ou melhor, não comecei o dia, sem comer as ditas castanhas? Cortesia de um espaço que não sendo um bar, tem sido paragem obrigatória nos últimos tempos. Este ano só me faltou mesmo o vinho ainda não vinho. Para o ano é que é.


* Para quem não estiver familiarizado com o conceito, passo a explicitar: saudade é aquele palavra que as bandas de roque estrangeiras eram obrigadas, por contrato, a dizer quando vinham cá ao burgo tocar para mais de 1.000 pessoas, nos anos noventa. E tinha de ser dito com ar de quem já cá tinha estado antes e dado o melhor concerto das suas vidas. Opcionalmente podia ser seguido por um "I missed you?" ou por "This afternoon I went to Bairro Alto and listened to some Fado".

P.S. - Também não me estico mais porque já é terça e tenho de ir escrever o resto dos postais que queria ter escrito nestes últimos dias, fingindo que foram escritos nos próprios. Porque se isto é para existir, é para manter a disciplina do postal diário. E a disciplina é fundamental, como diz o pastor. Assim pelo menos já vou namoriscando com o conceito. E por falar em conceito, nessa mesma noite, sugeriu-se que alguns produtos (é o que chamo aos que são pagos) e conceitos (é o que chamo àqueles em que perco guito), nos quais tenho a minha quota parte de responsabilidade, seriam algo farsolas. Desminto-o categoricamente e sinto-me até ofendido que me achem capaz de tal abjecta falta à verdade. Agora vou escrever o postal de sábado que já é quase quarta.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Postal para a Margarida II


Outra atracção venezuelana do maior interesse sociológico é, sem dúvida, a afamada maternidade de Misses Universo. Fruto do labor de uma vida do Alfredo da Costa deles, que, mais do que proporcionar melhores condições ao nível da assistência materno-infantil às venezuelanas, sonhava um dia poder oferecer uma Miss Universo a cada venezuelano. O edifício, situado bem no centro de Caracas, merece por si só uma visita, destacando-se o efeito espectacular provocado pelas frases de ordem inscritas por todo o interior e exterior do edifício, como: "World Peace" ou "End Hunger in Africa", que, como se sabe, têm tido um efeito tão devastador nas futuras Misses Universo como os escritos nas paredes da estação de metro da cidade universitária têm nos futuros licenciados pelas faculdades da zona.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Em vias de extinção

Sarah: I know he wasn't happy. That doesn't tell you much. I'd no idea how bad it was. I think he purposely wanted to cut off from all of us because he was so unhappy with where he was at.
Nick: Hm.
Karen: Is that true, Chloe? Did you feel that?
Chloe: I don't know. We had some good times. I haven't met that many happy people in my life, how do they act?
Nick: Mm hm.

em The Big Chill, argumento de Lawrence Kasdan e Barbara Benedek

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Coco

Voltou ontem, e a vast wasteland voltou a ser um vibrante meio de expressão cultural. Mesmo que seja via net. Antes da meia-noite, claro. O novo marcador, aqui.

 

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Postal para a Margarida

Sabaneta, uma pequena cidade que é a capital do município Alberto Arvelo Torrealba (foi poeta e político, uma espécie de Manuel Alegre lá do sítio, mas sem a experiência radiofónica em Argel). Não só alberga aquela que é unanimemente considerada uma das piores prisões do mundo, La Sabaneta, onde só nos últimos anos morreram mais de 1.000 pessoas (não consta que nenhuma fosse documentarista, pelo menos de profissão), como ainda pariu o mais famoso de todos os venezuelanos (depois de Carolina Herrera e Gustavo Dudamel), Hugo "El Presidente" Chávez. Um must.

domingo, 7 de novembro de 2010

Lá na Escócia

Duncan Grant "Self-Portrait" (1920)

sábado, 6 de novembro de 2010

Vai buscar

Desarmado, percebi
Finalmente toda a estória (não era grande espingarda)
Mas num recanto da minha cabeça
Vislumbrei a glória
Mas não estava escrito assim
No turbilhão da separação
superaste-te em libertação
Não há por aí, um espaçinho para mim?

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Nuberu Bagu

Vi recentemente Noite e Nevoeiro no Japão e nele descobri um Nagisa Oshima que não conhecia. O filme data de 1960 e é um dos quatro que Oshima realizou entre 1959 e 1960. É uma portentoso retrato político de uma nova geração de japoneses que se rebelava contra a amorfa e americanizada sociedade saída do trauma da segunda guerra mundial e, descubro agora, um dos filmes chave da Nuberu Bagu, o novo cinema japonês, que foi buscar o seu nome à tradução directa da Nouvelle Vague franciú. 
Mas ao contrário de todas as outras vagas de cinema novo que surgiram por todo o mundo inspiradas na francesa, o movimento japonês tem a particularidade de ter surgido ao mesmo tempo, se não mesmo antes. E salvo as devidas distâncias, podemos arriscar dizer que Oshima foi o seu Godard. A mise en scène, os diálogos e os movimentos de câmera que os introduzem não enganam, são políticos até ao tutano. Oshima tem é uma outra relação com a carne, com o sexo. Em Oshima, o sexo não é usado para validar a entrega, a paixão, a urgência dos personagens como em Godard, funciona antes como expressão do turbilhão interior de cada personagem, e é um exercício de libertação social, política pura portanto. E não falo só de sexo, falo de tudo o que é sexual. Há uma violência latente em cada toque, em cada olhar, que leva o filme para um patamar de intensidade que chega a roçar o cruel. 
Apaixonado, vou agora à procura de Contos Cruéis da Juventude.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Uma questão de corpo

Halcyon Digest passará à história como o momento em que nos apercebemos que aquilo que se vinha desenhando à frente dos nossos olhos desde o primeiro dia, passando por Atlas Sound e Lotus Plaza, era o mais impressionante body of work dos últimos anos. Psychedelic, kraut, dreamy, indie, pop, shoegaze, à la juventude sónica, à la colectivo animal, you name it. E que nunca exigiu muito para ser desfrutado em toda a sua plenitude: um ou dois ouvidos no mínimo estado de conservação e uns bons auscultadores.

 

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Postal para o maralhal

A todos os que a mim se abraçam de olhos embargados na rua (os fãs nacionais), a todos os que me entopem a caixa de correio com desesperados pedidos de actualização (os fãs internacionais), a todos os que me incitam a não desistir da luta e me relembram o papel social de qualquer blogue gritando espectaculares frases de apoio (os amigos de esquerda), a todos os que compreendem que tudo tem um fim e não há almoços grátis (os amigos de direita), a todos os que me enchem a caixa de correio com bilhetes e notas românticas (na sua maioria mulheres), a todos os que têm obstruído a porta da minha casa com coroas de flores, velas, bilhetes de condolências e música do Elton John (gente que eu não conheço), a todos os que não têm paciência para mais que ler em diagonal se o postal tiver mais de cinco linhas mas que acham simpático que isto continue a existir (o meu irmão), a todos aqueles que não deixo de ler mesmo que não escreva (os amigos com mãos de fada), mas acima de tudo, a toda aquela maioria silenciosa que por aí se arrasta cabisbaixa, demasiado desanimada para sequer se manifestar, eu digo: Calma!
Até amanhã.