terça-feira, 16 de novembro de 2010

O fogo que tudo consome


Foi um zapping completamente displicente - um daqueles em que a televisão só lá está para receber o olhar vazio, por uns breves instantes desviado do ecrã do computador, enquanto se matuta noutra coisa - que me levou a um grande plano de um homem que parecia em pleno processo de implosão. A câmera tremia como varas verdes (não escondia a zoomada, muito pelo contrário) e o boné e casaco a condizer denunciavam a filiação desportiva do homem. O olhar intenso denunciava a presença de mais alguém na sala e homem algum provoca uma implosão daquelas noutro, só uma mulher. Indícios portanto de estar a decorrer um diálogo veemente, a vulgar discussão, entre um casal. Uns segundos depois, poucos mas de invulgar estoicismo da câmera que perscrutava cada milímetro da cara daquele homem (ou talvez a simples atracção pelo desastre iminente), uma voz chegava finalmente de fora de campo, feminina, seca, magoada. Não era bem um diálogo, era um monólogo entrecortado por trejeitos e esgares e um olhar que oscilava entre o fulminante e o cabisbaixo, que ora projectava ora procurava o seu reflexo na alcatifa em que o homem raspava energicamente os pés. Quando o silêncio se instalou, por um segundo que ressoou pela eternidade fora, tornou-se audível o palco de batalha que era agora o corpo daquele homem. De um lado, a rigidez do maxilar e dos lábios engelhados, e do outro, o carácter que espreitava ao fundo da garganta, recusando-se a ceder às repetidas deglutições em seco. O combate terminou com uma meia vitória do carácter (já vão perceber), e o homem disparou com a força de quem se liberta de  anos de agrilhoamento: "mulher alguma fala assim comigo". E tão depressa o disse como lhe virou as costas (não há vitória possível quando se tem de virar as costas a uma boa mulher). Depois mudei de canal. Não me pareceu nada bonito da minha parte estar a partilhar  um momento tão íntimo daquele casal sem primeiro os conhecer melhor. Mas a geografia estava já bem demarcada e aquele calor húmido, aquele cheiro a terra queimada não enganava. Estávamos no território de Tennessee, de Faulkner, de O'Connor. Estávamos no Sul.
Assim conheci Coach Taylor e a sua mulher. Assim entrei em Friday Night Lights. Que, naturalmente, como qualquer coisa bem escrita, é tanto sobre high school football como o The Wire era sobre polícias e ladrões.