Este ano tive um Indie Lisboa atípico. Foi claramente a edição em que vi menos filmes nos últimos anos e também aquela em que a minha agenda mais andou em consonância com os chamados destaques do festival, ao que não será alheio o facto de praticamente só ter ido a sessões no horário de digestão do jantar.
Tinha de aproveitar a oportunidade única de ver Kasaba, a primeira longa-metragem do mestre Ceylan, em sala, que me confirmou definitivamente que a sua ideia de cinema está lá desde o início e me permitiu finalmente, com todas as peças do puzzle na mão, ter verdadeira noção do brilhantismo da depuração que tem vindo a executar ao longo dos anos.
L'Enfer de Henri-George Clozout foi outro que valeu a pena. Um documentário sobre a pré-produção e rodagem da obra-prima, nunca concretizada, que Clouzot preparava nos idos de 60 com uma Romy Schneider no auge da sua carreira (e beleza). Para além da atracção natural que desperta em quem se interesse pela sétima arte mais profundamente que o nível do sofá ou do assento da sala (os testes de cor e os devaneios psicadélicos, visuais e sonoros, a que Clouzot incitou a enorme equipa que reuniu a explorar durante um ano são deliciosos), é a inteligente progressão narrativa em pendant com os da película que Clouzot preparava, uma análise ao ciúme e à obsessão, que o transformam numa fascinante viagem ao universo de um cineasta, especialmente tratando-se de um realizador tão impenetrável como Clouzot.
Vi também Tales From the Golden Age, projecto de Cristian Mungiu, que juntou vários realizadores da nova talentosa geração de cineastas romenos, incluindo ele próprio, para realizar várias estórias passadas no não tão distante tempo em que Ceausescu governava com mão de ferro a terra de Vlad, a denominada golden age pela propaganda comunista, aqui exposta através de um dispositivo cómico, a roçar o rídículo por vezes, mas que nunca esconde o ternura com que trata todas as suas personagens (de ambos os lados das estórias). Escrito pelo próprio Mungiu, é acima de tudo, uma impressionante demonstração de polivalência desta nova geração romena (depois do realismo soberbo dos últimos anos) que numa hipotética copa de cinema, seria sem dúvida, a vencedora incontestável (derrotaria a Argentina na final por 2-0).